quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"Alexandria" de Alejandro Amenábar 2009


Ontem recebi a indicação deste filme para discutir 'filosofia da educação' e fiquei bastante surpresa com a trama. Não posso negar que há alguns incômodos (idioma, seqüência da narrativa, melodrama), mas quando nos deparamos com um filme que se apresenta rico para discussão, qualquer 'falha' ou 'problema' fica em segundo plano.

A história se passa em Alexandria (Egito), sob império do governo romano, no auge dos conflitos religiosos entre cristãos e judeus, que lutam pela soberania política, econômica e religiosa da cidade. Entre estes conflitos, temos a protagonista Hypatia (Rachel Weisz), filósofa, astrônoma e 'mestre' que discute com seus 'discípulos' filosofia, matemática e astronomia na Escola de Alexandria, junto à Biblioteca. Sua maior busca é entender o funcionamento do sistema solar, sempre pensado de maneira circular, a forma geométrica perfeita, onde não há início, meio ou fim, nem orientação ou direção. O infinito talvez?! Porém, existe uma outra forma, a elíptica, 'imperfeita' em relação ao círculo (ideal), mas tão contínua quanto. Seria a melhor forma de pensar a humanidade?! 

Talvez esta personagem seja uma boa representação da 'ciência' na História da Humanidade e da importância da filosofia, que diferente do 'senso comum' (forma de pensamento 'simples' do homem em relação ao cotidiano) é radical, porque busca os problemas em sua raíz; rigorosa, porque procura esgotar todas as abordagens possíveis, na tentativa de criar uma teoria; buscando a totalidade, para aplicar essa teoria ao todo. 

Para Hypatia, é preciso questionar tudo, inclusive a própria fé, e por isso ela não se identifica com religião alguma, já que todas pregam sua ideologia ao extremo, derramando sangue se necessário. Somente quando se abstrai todo tipo de fanatismo, é possível enxergar além. E acreditar em algo sem questionar, é de certa forma um fanatismo, uma espécie de cegueira. Inclusive não acreditar em nada. Até o nada deve e pode ser questionado! E quando ela é questionada sobre sua crença, Hypatia diz que acredita na 'filosofia', ou seja, pensar sobre o pensar.

Enquanto Hypatia valoriza o conhecimento e as discussões filosóficas, o cristianismo se dissemina rapidamente entre o povo, defendendo a existência de um único Deus, combatendo o politeísmo com as palavras 'divinas'. A partir da construção fictícia das relações entre os personagens do filme, conhecemos o 'escravo' de Hypatia, Davus (Max Minghella), que ao mesmo tempo que nutre uma paixão secreta pela sua 'mestre', inquieta-se com a situação de subordinação e tende ao cristianismo, religião que se dissemina facilmente entre os pobres, escravos e 'injustiçados'.

Quando a Biblioteca de Alexandria é invadida por cristãos, obstinados em destruir tudo que nutre uma 'ideologia pagã', vemos Hypatia (e muitos outros) deseperadamente tentando salvar os 'livros, ou o suposto 'conhecimento' construído até então pela Humanidade no contexto de Alexandria. Diante do desespero, Hypatia humilha Davus, que se revolta e resolve aderir a luta dos cristãos.

Além de Davus, um dos seus 'discípulos', Orestes (Oscar Isaac), também nutre uma paixão por Hypatia. Porém, ela se recusa a se 'aprisionar' a qualquer tipo de relação, que a torne subordinada ou incapaz de questionar, numa época onde a mulher (ainda hoje) é submissa ao homem. Hypatia deseja ser livre e talvez por isso, seja tão respeitada entre alguns homens. 

Mais tarde Orestes se torna 'prefeito' de Alexandria, e se antes questionador, adere ao cristianismo, buscando passividade e apoio político. Ao respeitar e ouvir Hypatia, que combate qualquer tipo de injustiça, Orestes é confrontado por Cirilo,  líder cristão que usa a palavra divina para 'condenar' Hypatia, alegando que nas sagradas escrituras a mulher deve ser submissa ao homem, não deve ensinar e nem questionar. Ele diz que Jesus escolheu 12 homens como discípulos e nenhuma mulher, reforçando a hierarquia de 'gênero' e desafiando Orestes a decidir quem vai apoiar. 

Este momento é chave, porque Orestes fica dividido entre a posição política de prestígio e o respeito que isso implica e sua 'suposta' crença, em confronto com seus ideais. Ao não se ajoelhar e admitir a submissão feminina, é apedrejado, ainda que se considere cristão.

Orestes sabe que se encontra em um beco sem saída, e sem coragem de voltar-se contra a maioria, arriscando a própria vida, também condena Hypatia, que é considerada bruxa, herege e pecadora.

O único a tentar protegê-la é Davus, banhado em sangue pelas batalhas religiosas travadas entre judeus e cristãos, que questiona a própria fé, pois quando agrediu Hypatia, ela o perdoou e libertou, e não entende porque não é possível perdoá-la. Ele diz aos 'colegas' que Jesus perdoou os judeus que o condenaram à cruz no leito de morte, então porque os Homens não podem perdoar?! Seus colegas alegam que nenhum homem poderia se comparar a Jesus ou a Deus, porque ele é um só, reforçando o fanatismo religioso e a distorção que se faz das 'sagradas escrituras' visando o próprio interesse e justificando seus atos brutais e injustos.

Diante dessa ficção inspirada em passagens históricas, é impossível não enxergar a História se repetindo. Fanatismos religiosos ou ideológicos que geram guerras e totalitarismos, em contraste com a objetiva e racional ciência. A ausência atual da filosofia, descartada entre os Homens e minimizada no contexto educativo, quando não excluída ou condenada a repetições. Uma 'cegueira' generalizada, já simbolizada por José Saramago, reforçada por atitudes sem questionamentos ou reflexões. 
Ainda que a 'cegueira' exista, não se pode negar as tentativas históricas de refletir sobre a realidade em diferentes contextos. Porém, assim como Hypatia, muitos pensadores e filósofos também foram e são condenados por pensar diferente ou questionar a maioria. Vivemos novamente numa era de confrontos, além dos físicos, também conceituais. Nunca se viu tanta luta para respeitar a diversidade dos povos e pessoas, mas também atitudes cruéis e primitivas em relação a toda essa luta. Se não pelas mãos, pelas palavras, que se confrontam em argumentos e ideais. 

Hypatia preferiu (se é que podia preferir algo) morrer e ser apedrejada do que submeter-se a fé cristã e seus rituais sagrados, uma mártir talvez! Orestes preferiu condenar a mulher amada para salvar a si mesmo, sendo um total covarde e ser alienado. Cirilo justificou seus atos e de seus seguidores com as supostas sagradas escrituras, como se fossem absolutas e inquestionáveis, sendo um cego e 'ditador', que impõe-se sobre os demais a qualquer custo. Devus foi o único que se apresentou aberto às crenças, questionando a si mesmo, aos outros e tudo ao seu redor. Um Homem mediano talvez, que avalia com os próprios argumentos e julga a partir do que sente e percebe. Um filósofo em construção, talvez?! Um alguém que buscou aprofundar seu 'senso comum' diante do mundo, transformando-o em 'bom senso'. 

Com qual deles nos identificamos?!

Um comentário:

Anônimo disse...

Sua análise do filme me deixou bastante interessado em vê-lo.
As ideologias, laicas ou religiosas, em sua origem quase sempre acolhem o discurso da fraternidade, da produção do bem. Com o tempo, elas se tornam irreconhecíveis. Pagam alto tributo a realidade dos homens e do contexto histórico-social. Não é pouco comum gerarem o oposto do que defendiam.